Engessando Conceitos: a ascensão do crime a imobilidade do “Estado”

por Bruno Pedroso Ribeiro

O que um Estado deveria ser e o que ele é?

Alguém já disse que o Estado é “uma entidade que reivindica o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”. E quando uma entidade, grupo de pessoas, organização, exerce a força física no mesmo determinado território? E quando o Estado não possui o exclusivo uso da força física em uma certa área? Sem problemas, como dito, esse processo demanda uma legitimidade.

A legitimidade provém do consenso em aceitar. Quando o coletivo aceita e acata, ele legitima. O que não é incomum, é legitimar sem conhecer. Legitima-se por tradição, por respeito, por medo, mas curiosamente, dificilmente legitima-se por desejo, apreço, estimo, a não ser pela própria vida.

Aqui aparece a pergunta incômoda, e quando uma entidade, grupo de pessoas, organização, exerce a força física no mesmo determinado território que um Estado reivindica, mas com a legitimidade da população local?

Configuramos um Estado dentro do Estado? Uma guerra civil? Insurgência? Ou simplesmente um problema de segurança pública? A realidade das favelas brasileiras, em destaque as de São Paulo e do Rio de Janeiro, retratam fenômenos que a ciência política sofre em responder.

É, aparentemente, consenso geral que moradores desses territórios dominados por facções criminosas não gostam da situação em que se encontram. No entanto, muitos desses moradores não só aceitam mas gostam deste estado. Essa organização social peculiar demonstra um limite do alcance do Estado. A organização criminosa acaba por preencher a ausência do último.

Basta apenas conversar com moradores dessas comunidades para descobrir que essas organizações criminosas fornecem serviços como alimentos, gás, remédios, emprego (informais, claro), e mais curiosamente, fornecem segurança e justiça, por mais arbitrária que seja. Elas, sem dúvida, possuem um poder de atração. São reconhecidas e legitimadas.

O fato de que pessoas, cidadãos de um Estado, não só aceitam e submetem-se, mas apreciam uma ordem regida por uma organização criminosa, não é novo. A própria organização dos Estados Modernos foi, em grande parte, fundamentada através do crime e da guerra. Quando o exército do Brasil sobe os morros do Rio, podemos considerar uma guerra? Os Estados não surgiram, a priori, com consciência de existência, apenas foram se constituindo.

Não sei, mas não acredito que as organizações criminosas, parcialmente organizadas, estão se constituindo como um Estado. Porém, sem sombra de dúvida, os conceitos que tomamos de Estado estão sendo abalados por fenômenos que não conseguimos explicar com a imobilidade desses mesmos conceitos que as pessoas assumem.

"Este não é um cachimbo"

A consciência coletiva, os vocábulos e as instituições são vontades das pessoas. O processo de formação destas foi longo e ainda ocorre. Os conceitos aparecem antes mesmo de as pessoas se darem conta. Elas perdem o seu traço, desconhecem o seu caminho. Acreditam que conceitos são os objetos. Acreditam que as palavras são o real. Esqueceram que são artifícios de representatividade de algo.

Os problemas estão na confusão entre as ideias e a realidade. Os conceitos existem para facilitar a compreensão de temas. Palavras são sempre didáticas, servem para ajudar, não para engessar conceitos. Ao compreendermos algo e acreditarmos que conceitos explicativos são reais, caímos em uma mazela que só fixa ideias que na realidade são voláteis.

Estado, Sociedade ou Economia não existem. São abstrações, representações. Tratá-los como objetos reais só dificulta entender a complexidade que essas ideias deveriam passar. Estado, Sociedade e muitos outros são palavras didáticas que tentam resumir um fenômeno, não são o fenômeno em si.

Devemos parar de confundir as representações com o real. Conceitos são construídos.

Portanto os convido a sair da caverna e pensar os conceitos de Estado e Sociedade como eles são, representações didáticas voláteis de fenômenos da realidade. Somente quando entendermos de fato o que são conceitos podemos compreender muito mais facilmente os fenômenos que acontecem ao nosso redor

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7 comentários

  1. Muito boa reflexão. Concordo que os conceitos são abstrações, que tentam facilitar nossa compreensão do mundo e podem acabar nos cegando para a realidade.

    Uma questão:
    – o que seria “mais poderosos”? O que é “poder”, neste caso?

    É o exercício da influência sobre a população? A capacidade de fornecer remédios e alimentos para a população de uma favela? A capacidade de exercer coerção sobre esses mesmos moradores, a fim de que eles se submetam à sua autoridade nesse território da favela? Ou a capacidade de organizar um território imenso como o Brasil, de criar leis, aprová-las e implantá-las, de criar um sistema judiciário complexo, de regular uma sociedade moderna e complexa, de instituir o que é lícito ou ilícito, de cobrar impostos, de decidir onde a população pode fumar ou não, de tornar a nossa vida no trânsito menos caótica, de ter legitimidade para punir, dentro da lei, quem desvia daquilo que está no ordenamento jurídico brasileiro?

    Pelo que entendo de legitimidade, ela vale quando o que é legitimado, no caso, o “Estado”, é legitimado por terceiros e por relativa voluntariedade desses terceiros, ou seja, neste caso, o “Estado” foi e é legitimado por uma população que aceita o seu funcionamento e, não raramente, admite que dele depende para viver e conviver e prefere que haja um corpo burocrátido de um “Estado” para organizar suas vidas.

    Será que as facções são legitimadas, ou será que elas mesmas impõem sua legitimidade? Ao ingressarem no mundo do crime, ao precisarem controlar um morro para que possam exercer sua “profissão”, ao resolverem problemas da população da favela que não são resolvidos pelo “Estado”, mas que são resolvidos por elas por meio de atos violentos e ilícitos, talvez as facções exerçam muita mais coerção do que recebam uma legitimidade “voluntária”. Fica uma questão para debate… Que permeia, inclusive, o conceito (a abstração) de legitimidade, mas também, o que é a legitimidade na prática: é legítimo aquilo ou aquele que adquire essa possível legitimidade por meios consensualmente considerados ilegítimos? Os fins justificam os meios?

    • Acho que vc acabou captando muito bem a ideia do texto!
      Em relação ao poder, eu deixar o termo o mais vago possível, procurando englobar os mais variados tipos de poder que poderiam ser exercidos nesses territórios.
      Nós precisamente temos um problema, o engessamento de conceitos, e uma situação, as facções criminosas e as relações que essas têm com a sociedade.
      A questão da legitimidade é meramente conceitual, e a atribuição da condição de Estado para uma organização criminosa é, ao meu ver, no mínimo, exagerada.
      Mas o fato de eu não considerar necessariamente uma organização criminosa como um Estado não exclui o fato da mesma possuir certas atribuições que, diretivamente, deveriam pertencer ao Estado.
      Ai fica a questão, as facções criminosas, surpreendentemente, possuem certas atribuições que se assemelham as do Estado, ao passo que elas também possuem semelhanças com o processo de formação do Estado. O que elas são? Apenas pessoas organizadas procurando lucro? Possuem finalidade política? Ao afirmarem que o morador da comunidade vem em primeiro lugar, não estariam levantando uma bandeira política e social? Almejam fundar uma nova sociedade?
      São questões que dificilmente conseguiremos responder se engessamos conceitos que são na realidade voláteis.

  2. Só para instigar mais…

    Legitimidade, então, é meramente um conceito? Não tem nada a ver com a realidade? Não é visível na realidade do dia-a-dia? Não se trata de engessar os conceitos, trata-se de ser fiel à ideia de legitimidade, que talvez não devesse ser tão facilmente relativizada.

    Se um morador da comunidade viesse, realmente, em PRIMEIRO lugar (acima do objetivo da facção, acima da luta contra a invasão da polícia no morro etc.) para as facções, talvez não houvesse tantos civis mortos por tiroteio nas favelas…

    • Legitimidade é um conceito sim, porém todo conceito possui uma raiz em fenômenos reais. Como eu disse, a questão da legitimidade como tratei é conceitual. O fato de ser um conceito não o desvincula da realidade. A desvinculação, podendo ser parcial ou não, acontece quando se engessa o conceito.Temos que ter em mente também que a legitimidade não é muito uma questão de voluntariedade, mas de aceitação.

      É interessante ressaltar que os objetivos da facção não são necessariamente conflitantes com a condição do morador da comunidade estar em primeiro lugar e a própria “luta contra a invasão da polícia no morro” pode se configurar como uma forma de manter o status quo do núcleo social criado por essa relação, relação essa que podemos supor como valorização do indivíduo desse território pelas organizações criminosas. Olhando inclusive para os últimos mapas dos crimes em São Paulo, por exemplo, podemos constatar que em muitos casos é mais seguro andar na favela de madrugada do que em áreas nobres das cidades.

      A questão não gira em torno da legitimidade que um grupo criminoso possui frente ao Estado, mas sim na imutabilidade forçada dos conceitos que deveriam servir apenas para ajudar a explicar e entender, e não congelar as compreensões em parâmetros que nem sempre se aplicam à realidade. A questão das facções criminosas, relações de domínio, território, sociais e políticas em relação ao Estado é apenas uma questão que escolhi para exemplificar o que ocorre na análise de fenômenos conceitualizados. Porém o assunto é polêmico e importante o suficiente para desviar a atenção da conceitualização.

      Não estou afirmando que as facções realmente colocam o morador em primeiro lugar, apesar de afirmarem que sim. Acredito que uma das noções que o texto passa é como evitar maniqueísmos a exemplo de, as facções criminosas são tudo que há de mal nesse mundo ou são verdadeiras organizações filantrópicas enrustidas. A realidade é muito mais ampla e complexa e só vamos começar a compreender o seu funcionamento se utilizarmos conceitos que não reflitam uma realidade imutável.

  3. Curti, Bru. Uma outra perspectiva dos conceitos que fazemos cotidianamente.
    Conceitos não devem ser engessados, mas sim ajudar a explicar fenomenos e faciltar sua compreensão.
    Precisamos enxergar melhor Estado, sociedade e economia como “representações didáticas voláteis de fenômenos da realidade”.

  4. Ótima proposta e ótimo artigo, Bruno!

    Concordo plenamente com a idéia de que o constrangimento da análise da realidade feita por conceitos que nao condizem com a vida prática é prejudicial a uma abordagem crítica.
    Para além da ideia de crime paralelo, em constante conflito com o Estado (no sentido de uma zona de “vácuo de poder” ocupado pelas facções), acho que uma abordagem conjunta, do Estado e do crime enquanto suas formações e suas manutenções é mais pertinente no caso analisado.
    O funcionamento em harmonia entre as redes ilícitas e as redes lícitas perdura para além de separações explícitas territoriais (como no caso das favelas), possuindo uma capilaridade que ultrapassa essa esfera visível. Ou seja, o problema prático exposto é apenas uma manifestação de uma relação íntima muito mais profunda.
    Portanto, acredito, assim como você, que os próprios conceitos devam ser constantemente repensados para que as ciências da sociedade possam analisar de maneira profunda a nossa realidade.

  5. Gostei muito do artigo. Acredito que ele surge com uma forma de desconstruir sensos comuns que a maior parte da sociedade tem, de que o Estado é sempre soberano a tudo, e que não há poderes paralelos à ele que podem restringir suas ações.
    Achei muito pertinente debate proposto pela Luisa sobre se é realmente legítimo um poder que foi imposto, ou seja,que as pessoas respeitam apenas pelo medo de sua coerção ou repressão.
    Em relação a isso, tenho a ideia de que essas organizações que exercem seu poder, principalmente nas favelas, só conseguem fazê-lo porque não há presença forte do estado, ou seja, o estado não realiza de forma efetiva e eficaz suas “funções” naquele território. A partir disso, surge a dúvida da causalidade: o estado não estar presente nas favelas é consequência da existência dessas facções que inibem suas ações, fazendo estas o papel de “Estado” nesses territórios específicos; ou seria o contrário, o Estado não estar presente (pelas mais diversas razões, como por exemplo, falta de interesses nas populações mais pobres que consequentemente contribuem menos com os impostos) é a causa para a formação de facções, que se aproveitam da ausência do estado para impor ordem, garantir seu poder e desempenhar algumas funções que seriam do próprio estado.
    Acho válido relembrar algumas das discussões feitas em aula, que apontavam o fato de que facções e o poder paralelo só conseguiam existir justamente por haver a instituição Estado, que todos consideram como legítima e que impõe uma forma de organização da sociedade, além de desempenhar certas funções que lhe são atribuídas. Assim, é provável que o PCC não existisse se, primeiro, não tivesse sido “necessária sua criação” para que os presos pudessem se proteger da violência nas prisões, sendo estas últimos criadas pelo próprio aparato estatal, segundo, se não tivesse a possibilidade de desempenhar um papel semelhante ao atribuído ao Estado, em alguns territórios, ganhando por isso legitimidade e mais poder, terceiro, se não conseguisse sua manutenção através de uma relação funcional com o Estado, já que há muitos policiais [funcionários estatais] envolvidos com o PCC, permitindo sua sobrevivência nas favelas, já que a existência do PCC é útil para o Estado pois mantém a ordem nessas regiões. Assim, o meu ponto é o de que essas organizações criminais teriam muito menos força, ou não existiriam, se não houvesse o Estado, sendo as linhas que separam o lícito e o ílicito muito tênues e difíceis de serem distinguidas.

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