“Somos todos refugiados”: relato sobre a exibição do filme “Era o Hotel Cambridge” no Festival da Cultura da PUC-SP

“Somos todos refugiados”: relato sobre a exibição do filme “Era o Hotel Cambridge” no Festival da Cultura da PUC-SP

Por Emile Ribeiro, Isabela Agostinelli e Maria Tereza Cavalheiro

 

Em um prédio antigo no centro de São Paulo, entre milhares que estão abandonados ou desocupados, encontra-se um grupo de brasileiros e imigrantes, os quais encontraram um refúgio dentro de uma ocupação na qual moram homens, mulheres e crianças que tentam administrar esse local, lidando constantemente com uma ameaça de expulsão. É em meio a este cenário que se desenrola o filme “Era o Hotel Cambridge”, de 2016, dirigido por Eliane Caffé, cuja história expõe as contradições e os conflitos inerentes à dura luta por moradia numa cidade onde a especulação imobiliária, a discriminação e a falta de oportunidades produz um grande contingente, que alguns podem chamar de excedente, expulso de suas habitações e de seus próprios direitos.

“Era o Hotel Cambridge” foi exibido na PUC-SP, no dia 15 de agosto de 2017, como parte das atividades programadas para o Festival da Cultura, evento organizado pela Pró-Reitoria de Cultura e Relações Comunitárias (PróCRC) com o intuito de comemorar os 71 anos da universidade, completados no dia 22 de agosto, e tendo como tema geral as questões relacionadas à migração e ao refúgio.

No filme, misturam-se elementos da realidade com elementos da ficção. A ocupação no Hotel Cambridge realmente ocorreu, no ano de 2012, envolvendo a Frente de Luta por Moradia (FLM), e grande parte do elenco foi composta por “não-atores”, por indivíduos que de fato faziam parte da ocupação. Um exemplo é Carmen Silva Ferreira, coordenadora do movimento FLM. No filme, assim como na realidade, Carmen liderou o movimento de ocupação, e inclusive a cena em que eles ocupam um outro prédio realmente aconteceu, na qual que ela diz: “Corra, corra para dentro de sua casa!”. Apesar de tal ocupação ter ocorrido  três meses depois do fim das filmagens, a equipe de produção se mobilizou para filmá-la e posteriormente incorporá-la ao filme, dando um grau ainda maior de veracidade.

Sendo assim, apesar da ficção trazida pelo filme, existe uma ocupação de verdade sendo realizada e toda uma estratégia pensada para que se materialize. Primeiro, por escolherem uma época de desgoverno para a ocupação, ou seja, um momento de mudança de governos. Além disso, o uso de códigos também é uma realidade. A “festa” que é citada durante o filme significa a ocorrência de uma nova ocupação, ao passo que os “penetras” seriam os policiais.

No evento tivemos o prazer de receber a diretora do filme, Eliane Caffé, e um dos atores, Isam Ahmad Issa, palestino refugiado no Brasil. Ambos promoveram um debate acerca das questões centrais do filme, logo após sua exibição, trazendo a questão do movimento dos sem-teto e sua articulação com a realidade vivida por refugiados que se viram obrigados a sair de seus países de origem, inclusive por motivos de ocupação militar.

1Eliane Caffé, diretora de “Era o Hotel Cambridge”, ao lado de Isam Ahmad Issa, refugiado palestino que interpreta a si mesmo no filme. Ambos debateram os problemas sociais evidenciados no longa-metragem, em evento do Festival da Cultura da PUC-SP

 

Sobre a escolha do Hotel Cambridge como cenário principal do filme, Eliane Caffé revelou que um dos motivos era o fato da organização social do local ser impressionante. Focando nos movimentos organizados, Eliane salientou que eles são incrivelmente estratégicos para as ocupações, atuando nos três níveis de poder: o estadual, federal e municipal. Para a ocorrência de uma ocupação, eles pesquisam imóveis que estejam abandonados e conseguem se informar por um site público, que também mostra a ficha cadastral desses “alvos” (se eles estão com dívidas de IPTU, se estão na área “A”, que seria uma área de maior interesse e localizada mais perto do centro, entre outras informações).

Eliane discutiu a questão do choque cultural vivido por todos os habitantes daquela ocupação, uma vez que são muitas pessoas e culturas diferentes habitando o mesmo pequeno espaço. Ela apontou o desconforto gerado entre os brasileiros e os congoleses pelo fato destes, por motivos culturais, não poderem dormir com seus filhos no mesmo quarto. Num primeiro momento, os brasileiros enxergam essa questão cultural como uma simples “frescura” e ficam muito incomodados, afinal, quase já não há espaço para todo mundo, e uma mesma família se dividir e ocupar dois quartos diferentes é totalmente inviável. Contudo, esse desconforto vai sendo amenizado conforme as diferenças culturais vão sendo entendidas.

O primeiro contato dos imigrantes é com a população de baixa renda que, sem condições de pagar aluguéis caríssimos e lutando por uma moradia, passam a ocupar, por meio de movimentos organizados, os imóveis sem função social. Diante disto, muitos imigrantes, principalmente os refugiados, temem em participar de tais ações políticas, visto que o Artº 107 do Estatuto do Estrangeiro os proíbe de exercer qualquer atividade de natureza política e de se envolver, seja direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil. Contudo, conforme é visto em “Era o Hotel Cambridge”, a necessidade de lutar pelo direito de moradia ultrapassa o medo e une, numa mesmo objetivo, brasileiros e estrangeiros.

Assim, apesar das diferenças culturais, o que de fato aproxima os brasileiros e estrangeiros, o que os inclui em situações de falta de moradia e ocupação de prédios sem função social, é a realidade de ambos serem vítimas do mesmo sistema. Como dito anteriormente, Carmen Silva Ferreira, coordenadora do FLM, interpreta a si mesma no filme, explorando os limites entre realidade e ficção nos quais o filme nos envolve. Sua fala mais marcante é a de que “Somos todos refugiados. Refugiados da falta de nossos direitos”, em resposta a um personagem que reclama ter que se preocupar com os refugiados de outros países enquanto os brasileiros também sofrem com a falta de moradia.

Ao longo da produção do filme, toda a equipe praticou a dinâmica de intervir e ser intervindo. Assim, tanto ela quanto os atores e não-atores foram impactados no momento de fazer o filme. Um exemplo é a criação de espaços culturais no prédio, como aquele das cenas finais do filme em que os moradores são filmados dançando, a instalação de uma lan house (espaço com computadores conectados à internet) e de uma biblioteca, espaços que continuaram existindo e sendo utilizados pelos habitantes mesmo após o término das filmagens.

Eliane também se deixou ser impactada, passando a se engajar na causa do movimento por moradia ao longo da produção do filme, movimento com o qual não tinha muito contato antes. Assim como ela, os refugiados passaram a querer entrar para o movimento e inclusive passaram a participar do grupo de luta por moradia organizado apenas por refugiados e imigrantes, o Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST), criado em 2014. Pitchou Luambo, um dos personagens do filme, é refugiado da República Democrática do Congo (RDC) e atualmente coordena o GRIST.

Quando questionada sobre a ação do Estado brasileiro para com os indivíduos que buscam refúgio no Brasil, Eliane comentou: “Eu acho que hoje, tudo que se refere aos equipamentos do Estado, é visível que a gente está num momento muito negro da nossa história, que tudo que eles pudessem enxugar eles enxugaram. Todos os recursos destinados a políticas públicas em vários seguimentos, moradia, saúde, educação, a questão dos refugiados, migrantes… tudo que vocês puderem imaginar, eles enxugaram. Eu estava ontem numa reunião lá no Ministério Público, ouvindo os depoimentos de várias lideranças, não só de moradia, mas estava um pessoal dos ambulantes, camelôs e você tem que ver eles falando da situação deles. Como está tendo essa pauperização do país inteiro, muitos estão tentando manter a sua dignidade, que antes de cair no crime, digamos assim, a última saída é o trabalho no comércio informal. Eu vi lá na ocupação, por exemplo, quando eles cortaram o bolsa família… Famílias inteiras viviam do bolsa família. Então, quando você fala hoje de políticas públicas para refugiados, para os estrangeiros, você imagina quem está dando conta disso?! Agora não sei o que vai acontecer, porque é nítido o nível de violência que começa a acontecer como consequência direta”.

Por fim, Eliane defendeu a necessidade de se levar toda essa discussão sobre o problema social da moradia para uma ação mais prática, apontando que os debates devem sair das bolhas das universidades, uma vez que os trânsitos e as ações para uma mudança ainda são mínimos. Ela ainda salientou que dizer “Isso não tem nada a ver comigo” não funciona, uma vez que as relações intersubjetivas perpassam toda nossa realidade. Estamos todos na mesma engrenagem, ainda que haja um obscurecimento dessa realidade.

Tanto a exibição do filme quanto a conversa com Eliane Caffé e Isam Ahmad Issa nos mostraram a urgente necessidade de não apenas nos debruçarmos sobre o tema da luta por moradia e sua intersecção com a questão da migração e refúgio, mas nos alertou sobre o papel que cada um de nós possui nessa grande engrenagem, no sentido de cobrarmos cada vez mais soluções, sobretudo advindas de políticas públicas, e não ficarmos discutindo estas problemáticas apenas no âmbito acadêmico. Ademais, tais temas dialogam bastante com as propostas de pesquisa do PET-RI da PUC-SP, as quais abarcam as questões de direitos humanos, segurança e violência em perspectiva doméstica e internacional.

 

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Isam Ahmad Issa, Eliane Caffé e Reginaldo Nasser, Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, tutor do PET-RI  e assessor da Pró-CRC

 

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