À procura de viver

A abordagem à situação atual no Pinheirinho (São José dos Campos, SP) é acompanhada por fotos dramáticas, prisões, debates, agressões e confrontos entre policiais e civis. No entanto, uma das questões menos pautadas é a evidente violação dos direitos mais básicos da população local.

Desocupação de Pinheirinho

Enquanto o arquiteto brasileiro Cláudio Acioly, coordenador do programa das Nações Unidas para o Direito à Habitação e chefe de política habitacional da ONU-Habitat, em entrevista à BBC Brasil, expõe a violação de um direito básico – à moradia adequada – no Pinheirinho, especialistas em direito constitucional demonstram sua opinião em matéria publicada na Folha de S. Paulo de 24 de janeiro: a situação no Pinheirinho não consiste em “um caso de grave desrespeito aos direitos humanos nem num caso relevante, com repercussão internacional”, afirma o advogado Gustavo Rene Nicolau. Assim, tais direitos, além de se tornarem repentinamente mensuráveis, devem ser devidamente defendidos e assegurados pela Justiça Federal somente quando a situação em questão for abordada pela mídia internacional.

Dessa forma, cerca de 6.000 pessoas que foram desalojadas de suas casas em Pinheirinho, para que pudessem receber a devida acomodação (na rua, em abrigos próximos a viveiros de pombos e fezes de animais, sem condições sanitárias adequadas, sem documentos e com apenas uma muda de roupas), deverão esperar até que a abrangência midiática internacional, necessária para que uma medida mais eficiente seja tomada pelo governo brasileiro, seja conquistada.

A invasão do bairro em 2004 e a expulsão dos atuais moradores do Pinheirinho são avaliadas das mais diversas formas e julgadas tanto corretas e justas, como incorretas e absurdas. Justamente pela complexidade da situação, a questão aqui pautada resume-se à denúncia do modo como o governo estadual e a polícia militar têm interferido na vida dos agora ex-moradores, e a posição aqui tomada filia-se à de Acioly, que se demonstra mais condizente com a realidade dos fatos, caracterizada pela violação dos direitos humanos da população local, e que prioriza a garantia da dignidade humana.

Talvez a diplomacia e as atitudes do governo brasileiro devessem funcionar no mesmo sentido – em prol dos direitos individuais, os quais o Brasil tem tradição de defender e obrigação de garantir. Não é à toa que a postura de Dilma e a posição do Ministério das Relações Exteriores têm sido questionadas, inclusive, por parte da população civil brasileira e recebido críticas por não agir diante da repressão síria, pressões para posicionar-se oficialmente em relação à morte do dissidente cubano Wilman Villar e indagações quanto à sua política migratória especial para haitianos.

Dando continuidade à contraditória política (externa e interna) de direitos humanos do governo brasileiro, a imigração de haitianos no Amazonas inaugurou e oficializou o mais recente sistema migratório seletivo promovido pelo Estado brasileiro. A imigração restritiva de haitianos no Brasil tenta ser justificada pela “invasão” da população que, dois anos após ter sido desalojada por conta do terremoto no Haiti, continua a ser vítima de um desastre, mas que já não é mais natural; pelo contrário, é o desastre da falta de solidariedade, de fraternidade, de assistência aos mais fracos e de honra ao sistema interamericano de direitos humanos; é o desastre da negligência, do desrespeito e da conivência com a desumanização das relações internacionais.

A restrição estabelecida determina que os imigrantes haitianos devam ter permissão para entrar no país apenas quando em posse dos documentos exigidos, quando dentro da legalidade e de forma controlada – a fim de que o Brasil não sofra consequências econômicas e sociais drásticas. Enquanto especulações são feitas quanto a tais pouco possíveis e pouco prováveis consequências, cerca de 4.000 haitianos (número baixo quando o termo utilizado é “invasão”, mas significativo quando se trata de precariedade, imobilidade e desemprego) já cruzaram a fronteira e permanecem às margens da “civilização brasileira”, da legalidade, das prioridades do governo brasileiro e da garantia dos direitos mais básicos.

"Funcionário da ONG Médicos Sem Fronteiras organiza a distribuição de kits de higiene pessoal para imigrantes haitianos" - FOTO: Marcio Silva/Acritica

O Brasil fecha fronteiras e limita vistos, mas sua história não o dignifica para tal. O Brasil nunca fez alarde por conta da entrada de paraguaios e bolivianos ilegais no país. O Brasil nunca controlou a entrada de imigrantes europeus. O Brasil não sabe o que poderá ser feito pelos haitianos, caso o número de potenciais imigrantes ultrapasse a cota de 1.200 vistos anuais a serem emitidos. O Brasil não parece acreditar que os haitianos já tenham sofrido o suficiente para chegar até aqui nem que eles mereçam asilo e boas condições de vida.

Assim como demonstra a posição da ONG Conectas Direitos Humanos, o Brasil caminha em direção a uma política migratória restritiva, violadora dos direitos humanos, justamente aquela que o governo tanto critica em outros países. Tal postura contradiz o papel de potência emergente que país tem tentado assumir, aquele que deveria inaugurar uma liderança fraterna e solidária, mas que parece contentar-se em seguir os imperativos da lei e da sua própria segurança.

O Brasil deve eleger a questão migratória como prioridade e ganhar destaque por isso, deve preparar-se para recepcionar os imigrantes, deve recebê-los com humanidade e deve acolhê-los sem restrição alguma, afinal, tal medida ainda representaria uma atitude mínima: deixá-los entrar sem prestar qualquer tipo de assistência, contribuindo, inevitavelmente, para a degradação do ser humano.

Gigante pela própria natureza, o Brasil precisa assumir o desafio do pleno e total comprometimento do Estado brasileiro à causa dos Direitos Humanos para que o futuro, de fato, espelhe essa grandeza.

E vale lembrar… como aponta Janio de Freitas, em edição de 12 de janeiro da Folha de S. Paulo, os haitianos estão apenas “à procura de viver, só os ricos mudam de um país a outro por prazer”.

7 comentários

  1. A cada minuto que estudo e que me informo me convenço mais que ser politicamente correto nos tira a autenticidade e a sinceridade. Desculpem-me os intelectuais dos direitos humanos, mas lugar de ilegal é na fila da deportação e lugar de invasor é na rua.

    Que comecem os comentários inócuos e padronizados dos que se julgam intelectuais!

  2. Que absurdo o comentário acima! Eu sou um defensor dos princípios da propriedade privada, mas o que houve em São José foi uma barbárie perpetuada e apoiada pelo Estado. O dono do terreno devia dinheiro para a prefeitura de SJC, dinheiro que era capaz de comprar a área em questão. A mídia exagerou, dos dois lados, mas a reação da polícia é digna de um Estado facistóide.

    Agora, quanto a questão dos imigrantes…
    A questão vai muito além de esquerda e de direita, como no próprio pinheirinho. Controlar o direito de ir e vir das pessoas, por sí só, é um abuso. Mas esse abuso é ainda maior quando outras questões não estão em pauta, como a segurança nacional. Um grupo de refugiados, fugindo do horror diário que é viver em um Haiti pobre pós terremoto, procura vida melhor em um país mais rico e com mais oportunidades.
    Qual era a ameaça dos Haitianos? Roubar? Ocupar postos de trabalho? Como, se já seriam marginalizados em uma sociedade repleta de calhordas como você, camarada, que comenta um absurdo destes?

    O mundo não é “preto” nem “branco”.
    Deal with it.

  3. Quando aos invasores de Pinheirinho, o tema aqui tratado não é o seu direito de invadir determinado território ou a reafirmação de que devam estar na rua. Mesmo que concordasse com a afirmação acima, de que seu lugar é na rua, a transferência dos moradores de Pinheirinho para a rua não deveria ser feita repentinamente e violando os direitos mais básicos dessa população. Medidas drásticas como essa (a desapropriação do bairro em questão) exigem estudo, preparo, análise de riscos, prevenção de consequências negativas, aviso prévio à população que será removida e auxílio aos desapropriados: esse sim é o raciocínio e a postura de um governo que, de fato, importa-se com a garantia da dignidade humana de seus civis e, ainda assim, consegue fazer prevalecer a lei (aquela que determina a obrigatoriedade da expulsão dos moradores de Pinheirinho).

  4. Na minha opinião, antes de ajudarmos o vizinho nossa casa deve estar em ordem.
    O país está crescendo no que diz à economia e aos direitos sociais, mas ainda vemos milhões de cidadãos brasileiros que não têm moradia, têm fome e vivem num mundo onde educação de qualidade e saneamento básico já é pedir muito.
    Sim, seria a favor da ajuda aos haitianos se ao menos a grande maioria dos brasileiros tivessem acesso à todos os direitos básicos que o Estado tem a obrigação de fornecer. Enquanto não resolvermos nossos problemas domésticos, infelizmente, temos que manter cotas de vistos e outros mecanismos que visam o mesmo objetivo.

  5. Lucas, obrigada pelo comentário, concordo com você. No entanto, temos que parar para pensar se o estabelecimento de uma cota de vistos e outros mecanismos similares estão sendo impostos a fim de que os recursos e as estratégias do governo brasileiro possam ser direcionadas aos brasileiros que não têm seus direitos básicos garantidos. Se essa for a intenção, então ótimo! Infelizmente, não acredito que seja o caso. Mas esse é só mais um motivo que temos para cobrarmos daqueles que nos representam que justifiquem as medidas criadas e que prezem pela qualidade de vida dos próprios cidadãos.

  6. Ótimo artigo Luísa.
    O mais engraçado é vermos a vontade que a diplomacia brasileira tem em agir em prol dos Direitos Humanos internacionalmente sendo que o próprio governo não consegue resolver os problemas relacionados dentro do país e, ao contrário, age de modo oposto ao que prega.

  7. Primeiramente, afirmo novamente o elogio ao artigo Luísa.

    Segundo, gostaria de colocar uma questão que venho pensando e está, de certa maneira, relacionada à própria questão dos haitianos no Brasil.

    Chamo atenção à conjuntura que este fato está inserido. O Brasil é um dos principais países emergentes e hoje, um dos maiores “players” da economia e da política internacional. Isto é, toda aquela história que estamos cansados de ver em todos os meios de comunicação e que a mídia francesa coloca como “passage de relais”, inferindo à mudança de forças na economia internacional. Neste sentido, ao mesmo tempo que essa mudança tem efeitos benéficos para o país, o expõe a questões difíceis e consequentes de ser um pólo (atrativo). É aí que devemos refletir: esta contradição entre discurso e prática, observada se não em todos, certamente em quase todos os Estados, é consequência direta de ser tornar “mais desenvolvido”? Até que ponto os países emergentes estão dispostos a construir uma ordem mais justa baseada em princípios e não em interesses?

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